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Hugo Monteiro
— Professor e investigador —
Delirar a Anatomia, de Ana Rita Teodoro, apresenta-se como “um conjunto de estudos febris” sobre o corpo, com o orifício como enfoque. Falamos de um tríptico, de uma homenagem, articulada ou segmentada, a três partes do corpo: ao joelho (1), ao intestino (2), à boca (3). Também esta nota se pode ler por segmentos, em fragmentos ou em articulação e também ela escolhe entregar-se à hesitação entre “febre” e “pesquisa”, entre formulação e vulnerabilidade. Entre…
1.
Reparem. O ponto de articulação entre dois elementos é importante. É aí que se decide a conjugação, ou a desproporção, a assimetria ou a coincidência. E reparem que esse ponto de conexão, esse ponto de confluência entre diferenças, tende a apagar-se e a invisibilizar-se em favor de um produto ou de um resultado. Ressalta o acordo ou desacordo, o encontro ou o desencontro, a coincidência ou o atropelo, silenciando-se o meio que permitiu qualquer destas soluções. Apaga-se o que está entre, o ponto de articulação, o justo ou injusto meio.
Como articular uma homenagem ao joelho? Como articular coreograficamente o joelho – o que há de orgânico num joelho – com o que o joelho simboliza, e conota, e convoca? Há uma função articulatória. A articulação é uma palavra-função: o joelho articula. Articula uma submissão ao poder. Legitima corporalmente uma oração, na genuflexão. Gere e propicia movimento, no vértice discreto entre uma tíbia e um fémur. Apenas esta pluralidade articulatória, este apagamento numa posição entre, permite a definição de joelho como “orifício”, no conjunto de orifícios homenageados na coleção de Ana Rita Teodoro. Porque, reparem, nunca o joelho está em palco. O vazio é o espaço da sua representação, porque o entre é o seu pontificado. Mas tudo o que vemos em palco é por ele que se articula.
2.
Algures, nos seus Cadernos de Guerra, Sartre refletia a partir de dois soldados que se insultavam com a frase “buraco de cu sem nádegas”… Seria o grande nada, um orifício apenas qualificado a partir de um limiar ausente: sem nádegas, predomina sem oposição o orifício. O segundo momento deste tríptico diz-se “sonho D’intestino” ou “um corpo que se e[s/n]tende a[n]os seus próprios dejetos”. Entre extensão e entendimento coreografa-se o movimento interior, oculto, a produção informe do informe na indústria do intestino, na sua grande produção de vazio. Sublinhemos o termo ‘Indústria’. Na sua ampla historicidade, a palavra greco-latina [In + Struere] conserva uma aceção de trabalho interior [In] que produz para o exterior [Struere]. Indústria é literalmente uma laboração íntima que se projeta para o exterior, de forma ritualizada e secreta, mas também decisiva, seletiva e serializada.
Homenagem ao intestino reclama, em palco, o labor oculto de um movimento, sempre socialmente proscrito por nunca ter tido nada de literal. A coreografia, nos seus insistentes movimentos de esmagamento, de dobra, de expulsão e de recoleção em momento algum se entrega a qualquer literalidade, precisamente por ocorrer nesse espaço vazio onde o trabalho interior de purga ou purificação se revela em toda a sua secreta visceralidade: toda exterior, toda interior, toda Indústria do corpo. E socialmente nada, sem cena, obs-cena.
3.
Finalmente, a boca. E, de novo, o entre como falso orifício: a língua entre solo e céu da boca, a língua como solo, a língua como anulação do vazio e como sua garantia. Ao mesmo tempo! E a boca, então, entre abertura e fechamento, entre produção e expulsão. A boca seria talvez o momento deste tríptico que mais daria que falar, precisamente por convocar abertamente o corpo todo, todo o corpo como boca na homenagem ao entre que é todo o corpo dançante. A boca reclama esse entre e é o limiar que o evidencia ou recolhe. Jean-Luc Nancy: “toda a boca é uma boca de sombra, e a boca da verdade abre-se ela também sobre esta sombra e como esta sombra”. A boca, a sua performatividade limiar, entrega-nos a esta mastigação de mão beijada.