Danças Liminares
Qui

 

12

.

05

.

2022

MAIS 

Ensaios
Joana Castro 6
Joana Castro 5
Joana Castro 4
Joana Castro 3
Joana Castro 2
Joana Castro 1

Júlio Cerdeira

— Intérprete e criador —

Em Darktraces: on ghosts and spectral dances, Joana Castro apresenta-nos um espaço cénico reminiscente do suprematismo de Kazimir Malevitch - um espaço de sombra, amplo e escuro que envolve um quadrado branco de linóleo. Nas artes cénicas, o branco abissal de Malevitch inverte-se, pois, aqui, tudo surge a partir da escuridão: esse é nosso espaço vazio do qual emergem formas, forças, corpos, objetos e sons. Esta forma branca assume, nesta peça, um carácter dual: é uma forma própria que se instala no espaço, mas também um plano criativo de onde surge um discurso coreográfico mais estruturado e rigoroso. 


No entanto, as mais curiosas manifestações de liminaridade e espectralidade surgem na tensão destes dois espaços. Na limitografia difusa do espaço de sombra e no recorte preciso do espaço de luz, surge uma coreografia de contraste e de camuflagem, que joga com a dimensão do visível e do invisível, na medida em que as usa para questionar a noção de presença do gesto. Tudo isto se torna mais evidente quando os membros são revelados ou escondidos no figurino, ou quando os gestos se instalam e desaparecem no espaço percetível. O espectral não é misterioso unicamente pelas suas características, mas, pela incerteza das mesmas, corporaliza-se em entidades de materialidades incertas, que se mostram de forma clara e difusa, como uma nuvem que ocupa o espaço e desaparece gradualmente. 


Numa coreografia que parece viver de diálogos múltiplos, revisita-se o universo pessoal dos quatro intérpretes, bem como, as tradições fantasmagóricas da dança, passando pela A Sagração da Primavera, de Vaslav Nijinsky, ou pela Hexentanz, de Mary Wigman. Julgo que esta última é, de todas, a referência mais comunicante com este trabalho, porque revela a importância dos braços, dos pés, do rosto e da respiração como elementos fundamentais para a determinação da movimentação pelo espaço e para a definição da identidade da coreográfica da peça. Tal como em Wigman, parecem surgir movimentos de absorção sensível das densidades do espaço: alternâncias velozes que provocam um arrastamento da imagem percetível do corpo; paragens abruptas de apalpação ou contenção das forças do espaço; arrastamentos lentos; e expressões que instalam no rosto para depois desvanecerem. Parece ocorrer aqui um desenho encantatório de forças abstratas, bem como, uma ocupação do corpo por forças ocultas.


Naquela que parece ser uma cisão com o discurso coreográfico anterior, dá-se uma invasão da cena por uma luz noturna que nos revela corpos menos enraizados nas tradições da dança e mais embrulhados sobre si mesmos. Depois da passagem de uma figura que se assemelha a um caracol, surgem, no espaço escurecido e azulado, corpos-mancha que se arrastam lentamente numa transição percetiva entre silhueta e não-espaço. Os corpos revelam-se compactados na bidimensionalidade da penumbra e alongados no recorte da sombra, imiscuindo-se nestas duas realidades de natureza semelhante. Tornam-se corpos-sombra, questionando os seus limites materiais e esbatendo as suas fronteiras. Borratam-se no espaço num movimento de expansão e contração, despem-se deixando um rasto de si, aglomeram-se numa osmose gradual, tudo isto para uma abertura a uma outra dimensão: deixam de ser corpo, e passam a ser um novo plano, um orifício em movimento pelo espaço, de onde poderão brotar novas formas.

Danças Liminares
Danças Liminares
Danças Liminares
Danças Liminares