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MAIS
Margarida Almeida
— Artista plástica —
E MAR ANHA DO é a tapeçaria de Penélope, constantemente desfeita, constantemente renovada por 11 mãos diferentes (22, porque tal como as mãos, somos sempre duplos); mãos essas que nunca se tocaram e que se circunscrevem a um ambiente incorpóreo e virtual.
Um mosaico de vidas, organizadas em pequenos retângulos, como se ao corpo lhe custasse caber em tão pequeno compartimento. Aqui o corpo é lugar de dor, mágoa, incompreensão, mas também de desejo, reinvenção, performatividade e liberdade. Como é referenciado no filme, a figura da quimera parece velar pelos 11 artistas brasileires, potenciando uma natureza multíplice e agregadora, mas que não anula nunca as diferenças, ampliando-as.
A dança torna-se assim um território de partilha de mundos, de dores e descobertas. A plataforma virtual que serviu de encontro a estes artistas impôs limites à forma como estes expressavam o seu corpo e à relação deste com o olhar do Outre. Por vezes, são precisas indicações – “Um pouco para a frente, um pouco para trás” – de maneira que o corpo consiga ser visto no infame retângulo digital. Esse diálogo é também uma outra forma de mediação, uma outra forma de interagirmos face ao julgamento do Outre, do corpo do Outre. Através dos pequenos retângulos, vemos multiplicarem-se braços, pernas, bocas, dentes, línguas, sexos; húmidos, cobertos de saliva e de pó, de tinta ou de sémen, não importa qual é a matéria que tinge, se todas as suas características são anuladas perante a estéril verdade da máquina.
Existem hesitações, recuos, recomeços, reajustamentos que o meio virtual dita. E também existem lágrimas, confissões, promessas e desejos. Mostram-se fotografias de infância, contam-se histórias, e algo de extraordinário acontece: a imagem que cada um é, em cada dispositivo, sobrepõe-se à imagem que cada um revela, através da fotografia escolhida, e não sabemos qual dessas imagens é mais real ou virtual; olhamos e temos a sensação de que cada artista é um duplo do outro, como um reflexo apanhado furtivamente num qualquer pedaço de espelho.
O isolamento do corpo a que a pandemia nos submeteu, cedeu lugar a outra forma de interação sensível – o movimento continua a perpetuar-se no tempo e no espaço, como um espectro, e traz consigo a sua vulnerabilidade humana, incomunicável, ainda mais presente.