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MAIS
Júlio Cerdeira
— Intérprete e criador —
A peça .G RITO, da coreógrafa Piny, propõe uma “deslimitação” dos corpos, do tempo e dos conceitos. Lembra em muito a filosofia do budismo zen, na forma como entende a fragilidade das fronteiras físicas e da linguagem, propondo um espaço vazio que procura destruir aquilo que separa substancialmente o “eu” do “outro”.
Essa ambiguidade é evidente logo no início do espetáculo, quando é delineado com fita-cola um “X” no centro do palco, que espelha o desenho de luzes florescentes que o sobrepõe. Esta ação decorre ainda o público se está a instalar no espaço, começando aqui a questionar-se o ponto de iniciação deste rito. Esta cruz é composta por linhas de encontro de diferentes temporalidades, criando diálogos de sobreposição musical entre o acústico galopado dos címbalos e a voz humana distorcida pela música eletrónica, ou entre a canção popular portuguesa e o hip-hop norte-americano. Nestes trilhos, encontram-se também práticas distintas do corpo: as danças urbanas, as danças luso-africanas, o vogue, as práticas da lavoura e do tanque, entre outras. O tempo da cena é migratório, percorre diferentes momentos na história e distintas geografias, mas só assume estas características particulares por ser o encontro destas 8 mulheres que se unem para a criação de uma comunidade de idolatria henoteísta: que exalta, relembra e reafirma figuras quotidianas como as suas avós, bisavós, mães e irmãs, tendo sempre a Mulher, como entidade maior de culto, enquanto identidade múltipla em (re)construção e manifesto.
A repetição do movimento para a criação de passagens rítmicas permite-nos uma consciencialização do tempo e uma consequente dissolução do mesmo, igualam-se as pulsões do corpo, do tempo e da música para se entrar num estado de transe onde estas de dilatam, dissipam e ressurgem. Neste espaço de confluição, a temporalidade dilui-se e o corpo molda-se no percorrer destes trajetos, mas é no esbater das fronteiras dos conceitos que surgem as questões mais prementes e liminares: São o feminino e o masculino conceitos mais dialogantes do que segregados? Que tempos anteriores ou posteriores compõe o nosso presente? Num grupo, quando é o que movimento deixa de ser meu e passa a ser do coletivo? É o grito mais impactante quando é audível ou quando nos é lembrado o seu constante silenciamento?
.G RITO não é um grito vocal, é um grito afónico, é amplo na forma como se abre na movimentação pelo espaço, pelo corpo e pelo rosto das intérpretes. Este é um grito do corpo que se afirma orgulhosamente do que é, com todos os riscos que daí possam surgir. A cada olhar, Piny abraça as suas intérpretes, assegurando-as de um espaço de confiança, para uma rescrita histórica do lugar, do percurso e do poder das mulheres. Reafirmam o seu lugar num espaço social dominado por um sistema patriarcal, que as obriga a este movimento diário de redefinição. Recuperam quase que antropologicamente a dimensão sagrada/festiva do gesto e do movimento em repetição e variação constantes, transportando-nos para rituais díspares, como os das gallae romanas ou dos primeiros balls norte-americanos. Piny vai para lá da criação de um produto cénico que perpétua a dimensão ficcional da dança teatral, mostra-nos um espaço comunitário para um encontro honesto de identidades e temporalidades, cria um rito de exaltação da dança como prática do corpo regular, íntima, erótica, política e transformadora.
.G RITO é mais do que um espetáculo, é uma comunidade que dança para "deslimitar” fronteiras e para impor o lugar de poder da Mulher.