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Erika Rodrigues
— escritora e doutoranda em Filosofia Contemporânea —
A cada respiração, a cada pausa, um movimento de retorno. Em Yeborath, de Ana Renata Polónia, somos colocados diante de um estado de intermitência no qual os corpos se deslocam e, com os corpos, todo o espaço se movimenta numa mesma ondulação. Neste interstício cénico, encontramos a força dos movimentos marítimos e o desejo oceânico dos corpos. Mergulhamos numa viagem íntima, numa intimidade com a própria incompletude: uma perda nunca suficientemente longínqua, uma proximidade nunca realmente presente. Dois corpos, dois riscos, uma mesma pulsação.
Através da performance, imergimos na obra de Tabucchi e nos relevos de uma trajetória que traz consigo Yeborath, os seus enigmas, as suas dores e as suas súplicas. Percorremos as diferentes intensidades e expressões dos corpos numa composição que coloca em movimento o universo feminino da personagem. Os contornos do arquipélago dos Açores são desenhados a cada feixe de luz e a cada sombra, criando um contexto onírico cuja forma movente coincide com a fluidez das sonoridades.
Durante os momentos iniciais, somos confrontados com a sensação de estarmos à deriva, sem pontos de referência, sem faróis para nos guiarmos até a margem do acontecimento. Em plena cena noturna, os movimentos sem imagem convocam a coreografia sonora dos passos, dos ruídos e da respiração das bailarinas. Nesta suspensão do visível, sabemos, pelos sons que se formam, que o oceano se desenrola lentamente. Então, aos poucos, o corpo mostra-se, enigmático, furtivo, pela oscilação de uma presença que se esvai, retorna, retoma o fôlego e novamente se afunda.
Entrevemos os pequenos pontos de luz, os gestos quase desfeitos, as chegadas e as despedidas, numa espécie de translucidez que atravessa a própria escuridão. Nesta configuração misteriosa do ambiente, agora desnudado, intensifica-se a sensação de uma deriva infinita. É-nos dado a conhecer o espaço e a duplicação dos movimentos dos corpos, um duplo em que já não resta senão o mesmo ímpeto de atravessar a distância. Ao mesmo tempo, uma e outra presença. As subtilezas entre o mesmo e já outro corpo. A cada instante mais profundamente lançados na voracidade do mar: uma mulher, as suas ilhas e os seus silêncios. Tudo flui, tudo oscila e, entretanto, um eco sem resposta permanece na superfície da pele.
Através desta dinâmica, a performance convoca as sinuosidades de um amor voraz, sem destino, perdido. Encontramo-nos entre a extrema solidão, a vulnerabilidade dos naufrágios e a delicadeza avassaladora dos seres marinhos. O oceano é o próprio tecido de um desejo que vive na profundidade dos segredos inconfessáveis: como nos grãos de areia guardados entres os dedos, os amores agarrados aos corpos, entre as bocas e os dentes. Nesta imensidão sem horizonte, em que o amor e a luta se conjugam e se perdem, o corpo quer lançar um apelo, um canto, uma súplica. A voz estremece, sussurra e grita com a mesma intensidade que é engolida pelas ondas.
Num jogo entre o espaço fluido e a tensão do desejo não consumado, habitamos os limites permeáveis de uma ilha, uma vida, no seu infinito movimento de existir.