.
.
MORE
CATEGORY
Diogo Sottomayor
— Transformador de sensações em gotas de tinta —
“É que há olhos que mudam de cor consoante a luz. Chame luz ao que quiser, querida amiga. Espero que esta resposta a satisfaça.” Tiago Rodrigues, Bovary [2014]
Parafraseando o início do espectáculo: isto não é uma crítica; isto é a promessa de uma não crítica.
O palco com um piano à esquerda, uma barra de ballet à direita e um quadro atrás com palavras-chave do que vamos escutar ao longo da peça. Atrás desse quadro, uma paisagem com árvores.
O afinador de pianos Siegfried e a bailarina Barbora Hruskova levam-nos numa viagem de sucessos, sonho, dores e datas, para descobrirmos que existem corpos anti-cisne. A bailarina conta-nos a história da sua carreira desde os tempos em que actuava em sua casa, com a irmã e a melhor amiga, onde as cortinas ajudavam na ilusão de que estavam num teatro; à frente, duas cadeiras para os pais. Os espectáculos estavam sempre esgotados. Mas, ao longo da sua carreira, com mais cadeiras e mais público, acumulou uma série de lesões e correspondentes dores, que vai partilhando com a plateia, numa topografia de compositores e de obras musicais e suas consequências sobre o seu corpo. Algo a que regressa posteriormente, quando rememora, em rima formal, as suas lesões ao ritmo dos exercícios de ballet a que sujeitou, em nome da arte, o seu próprio corpo. Desde a tripla cirurgia ao pé, passando pelo joelho, pela anca, e com o acréscimo do problema nas costas, que não ganhou a dançar, mas a aspirar a casa…
Nada é deixado ao acaso, a harmonia das palavras, os movimentos da coreografia, as músicas tocadas no piano pelo Mário Laginha e que acompanham todo a aventura que nos é narrada.
No quadro onde as palavras-chave estão escritas a giz, a bailarina desenha duas linhas angulares que tanto podem representar as asas de um cisne como o seu longo pescoço. Mais tarde, ali é também desenhado uma espécie de olho. Pode ser a representação do espelho, que é a maior companhia na carreira de uma bailarina – “passei mais tempo a dançar do que a dormir, reflecte ela a determinada altura – e de todo o trabalho de repetição em direção à perfeição que isso exige.
Eis, pois, uma história que nos desperta diferentes sentimentos. O que faz uma profissional da dança quando tem uma lesão? Aprende a dançar ou a redançar? Qual é o sentido da dança? O Ballet é uma escalada extenuante a cumes inacessíveis? O que fazer quando o corpo pede uma pausa?
Sentimos a nostalgia e as histórias que foram “tatuadas” ao longo do seu corpo. Cada espectáculo da sua carreira tem uma manifestação no seu corpo: “Quando danço, tudo parece um sonho mas, como tenho dores, sei que é real. Dançar dói, mas dói mais quando estou parada.”
No final, mirando o belo rosto de Barbora, podemos ver o brilho nos seus olhos. Serão eles o reflexo da ursa maior? Não sabemos. Como também não sabemos se esta será a última vez que o corpo dela vai dançar. Não sabemos nós, nem sabe o corpo dela... e que dúvida tão profícua para acalentar a alma do público.