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Rossana Mendes Fonseca
— fotógrafa e escritora —
Palco escuro e aberto. Triângulo de luz de tom amarelo no canto direito mais afastado ao nosso olhar: casa de partida. Entram três corpos singulares, distintos, discretos, que depositam objetos na margem do retângulo branco do palco. Silêncio ainda. Vários ecrãs ligam-se no plano que nos é frontal. Eles, ainda na casa de partida, descalçam-se, preparam-se. Um deles inicia uma intensão sonora. E avançam, os três, até ao meio do palco, no espaço branco, vazio. E no meio, a meio, expõem-se coletivamente, concomitantemente, até uma quase imobilização dos três corpos que, movendo-se muito ténue e lentamente, compõem entre si um corpo só, que se desdobra até à separação.
Observamos, então, uma dança a três, ainda subtil, sem a imposição dos corpos e dos ritmos em nós, como se algo se passasse ali, naquele plano, do qual ainda não fazemos bem parte, e sobre o qual ainda não nos debruçámos realmente. Como se nos falassem muito baixinho, interpelando-nos, começam, a meio, num meio qualquer. Interferem uns com os outros, contaminam-se. Dançam-se. Concentramo-nos, então, mais e mais, na atenção que nos exigem agora. Olham-nos, confrontam-nos. O nosso plano é o horizonte que parecem vislumbrar. E nós, presentes, parecemos encontrar nesse olhar, nessa dança, uma procura que atravessa toda a duração da peça: encontrar um espaço coletivo, a procura de um horizonte, de um território comum, no ensaio do movimento que dançam. Uns e outros. Os três. Serena, mas incisivamente. Movem-se na descoberta de espaço, desse território comum. Encontram-se a meio, em qualquer parte do espaço, em qualquer parte. E dançam-se, perseguindo o trilho sonoro, o gesto outro, que procuram na dança. A dança que é, aqui, movimento infinito do próprio gesto.
A cadência aumenta como um pulsar, um batimento cardíaco, até ao momento de luz alta. Tremem, então, deixam o corpo mover-se, aos soluços pulsantes. Deixam o corpo vaguear na própria dança. Procuram as formas, os traços expressivos uns dos outros, os traços expressivos de múltiplas danças. Há um respirar, movimentos de vaivém. Dar ritmo ao espaço, ao plano do solo. Sentam-se ao redor uns dos outros, como se, de repente, se encontrassem, agora para conversar, uma conversa calada, íntima, e decidem, uma outra vez, votar-se a essa experimentação no corpo de se deslocar no espaço dançando. Deslocam-se como se ponteiros de relógio fossem, num relógio fora dos eixos, que avança e recua no tempo, que aqui é espaço.
Retiram-se: casa de partida. Voltam à dança, a solo. Invadem-se, intersectam-se, invadem o espaço alheio, do outro. Ecrãs brancos. Ecrãs com ruído. Calçam-se para a corrida. E, em corrida, ocupam o espaço, o meio. Estacam, e saltam, como que desafiando muros invisíveis que parecem impedi-los de avançar, ou de sair. Saltam parecendo alcançar com o olhar, com o corpo todo, um horizonte. Talvez seja essa a partilha da dança: encontrar espaço possível para esse corpo coletivo que ousam, encontrar um meio de se dançar, num meio de qualquer parte. Talvez seja esse o meio do corpo que dançamos, no meio do infinito, em que o horizonte impossível a alcançar e o muro invisível sejam coincidentes. E a dança, essa dança infinita que vivemos, seja essa procura incansável de horizonte, que talvez se alcance na experimentação da dança que é do outro, na radicalidade do espaço longínquo, na velocidade infinita do som que palpita sem se ouvir no espaço. A procura de um território comum.
Casa de partida. Descalçam-se. E saem novamente para o meio do espaço, voltando à formação dos três corpos que quase se imobilizam, intersectando-se e parecendo assinalar o aspecto cíclico, o constante retorno a uma expressão coletiva e íntima de corpos que se misturam e se dançam entre si. Escuro. Partículas brancas, ínfimas, múltiplas, próximas do plano do chão começam a elevar-se no plano frontal, espalhando-se por todos os ecrãs, à deriva no espaço escuro. No plano do palco, os três corpos movem-se lentamente. Deitam-se. À deriva no espaço. Escuro.
Erguem-se, finalmente, aproximando-se da margem do palco e de quem os olha. A luz baixa revela os contornos dos três corpos que, em linha, de frente, se baixam num gesto de reconhecimento ao outro, como numa vénia. Recuam ainda em linha, sempre de frente, e juntos. Até acabar.