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Erika Rodrigues
— Escritora e doutoranda em Filosofia Contemporânea —
Tordre, de Rachid Ouramdane, inaugura uma composição coreográfica na qual as dinâmicas vitais dos corpos são minuciosamente articuladas numa torção que distende os elementos cénicos presentes entre o palco e o público. Uma viragem na qual nos voltamos em direção ao mais embrionário da dança. Através de uma relação visceral com os gestos, Lora Juodkaite e Annie Hanauer produzem uma força motriz capaz de transgredir a condição corpórea dos movimentos, mantendo-se, simultaneamente, na superfície de uma materialidade crua, sensível e poética.
Numa atmosfera cinematográfica, os movimentos de cada intérprete convocam experiências distintas que se interpelam sem jamais se sobreporem. No mesmo espaço singular e partilhado, configura-se uma espécie de avesso da dança produzido pelas sombras que se multiplicam em contacto com a luz. As silhuetas desdobram as suas curvas entre as composições geradas pelas duas presenças e as sombras que se repartem em três. Esta diferença indica-se como um retorno, um ritornelo, em constante sucessão. Entre os espasmos de um corpo a dançar nas voltas de um outro corpo a rodar coexiste um interstício.
O corpo a rodar o mundo a rodar a infância a rodar o medo a rodar, a memória a rodar a vida na carne de um corpo que roda, num turbilhão vertiginoso que o mantém em pé, diante do extravasamento dos seus contornos. No limite entre o amorfo e as formas nascentes, uma força elíptica excede a organização linear dos movimentos. Neste vórtice, tudo se alonga e se estende entre as partículas suspensas no ar e a realidade do instante. A circulação desta energia curvilínea ativa outras dimensões da corporalidade. Estas dimensões que constituem um corpo singular são igualmente constitutivas de toda criação artística.
Nas voltas que o corpo faz, a sua configuração primordial dilata-se numa fluidez que nos remete aos deslizamentos do barro trabalhado nas rodas de oleiro, aos círculos sagrados da dança sufi e às órbitas atómico-planetárias, mas também, lembra-nos a potência infigurável das contorções pintadas nos quadros de Francis Bacon. Ao rodar, cria-se uma outra modulação dos movimentos, numa abertura pela qual se ultrapassa os limites do tempo e do espaço. Pois, através destas dinâmicas, visitamos as memórias de infância da intérprete que coincidem com a infância dos próprios movimentos.
A partir da apresentação de Nina Simone, Feelings de 1976, assistimos, ainda, às deslocações de uma coreografia emocionada. Cada pausa, cada mínimo fôlego, cada sussurro invisível que advém das notas metálicas do piano estremece no corpo que dança. Os gestos surgem numa simbiose com os mais ínfimos acontecimentos, numa familiaridade com os arrepios latentes, quase impercetíveis, e com as sensações inteiras. Os aplausos do público reproduzidos pela música são duplicados na sombra do próprio público presente, colocando-nos diante da constatação e do deslocamento da nossa condição de espetador.
Num mesmo impulso, encontramo-nos diante deste espaço ilimitado de um frémito que recria as suas formas, convocando as relações fundamentais que se insinuam entre a vida, o corpo e as forças que o mobilizam. Entre a dança e aquilo que a perpassa. Diante dos corpos reais que respiram na distância da sala semi-iluminada do teatro, os movimentos transitam entre as diferentes intensidades, voltando-nos para um espetáculo no qual estamos mais que presentes, estamos, desde antes, profundamente implicados.